17/11/2009

'O sal no corpo'

....A mãe e a mulher não gostam do sal no corpo. A amante sim.
....Toca à mãe e, anos mais tarde, à mulher, lavar as fronhas dos travesseiros e os lençóis da cama manchados da água salgada que nos escorreu do nariz durante a noite. Toca à mãe olhar para a camisola que foi a nossa prenda de Natal e, anos mais tarde, toca à mulher pegar no pijama Armani que nos ofereceu no aniversário de casamento, toca a elas descobrir que as cores de desbotaram onde o sal atacou, que o dinheiro gasto foi dinheiro mal gasto. A mãe e, anos mais tarde a mulher, não gostam do sal no nosso corpo porque lhes recorda o amor que temos pelo mar. O sal que encontram no nosso corpo é uma violência à privacidade delas, porque nem dentro da própria casa conseguem esquecer o mundo que nós temos lá fora. O sal no corpo é a equivalência física, táctil, sensorial da obsessão no espírito, da paixão infinita que nos percorre a existência.
....A amante, essa, acha engraçada a sugestão de espaços abertos e horizontes luminosos na pele áspera e salgada. Sente-se transportada a um universo de vento e sol, e a ela não lhe importa se ele sabe ou não sabe a mar. Há qualquer coisa de inédito nesta pele que podia ser de um marinheiro irlandês, de um pescador da Sicília, de um pirata sarraceno. As suas fantasias levantam voo com aquela pele. Quando a ponta da língua dela circula pelo gume da orelha dele, quando os lábios se poisam na nuca, quando as pontas dos dedos dele entram pela boca dela, então a saliva dela desce a garganta reforçada com um tempero vital e livre - a saliva que lhe desce pela garganta traz sal.
....É assim desde que o mundo existe: a mãe e, anos mais tarde, a mulher recolhem as roupas por lavar, toleram os atrasos à hora das refeições, suspiram com o mau feitio dele nos dias de neura, suportam o suor no corpo; a amante recolhe o melhor, recolhe o sal à flor da pele.
....Eu gosto de adiar o duche para o dia seguinte, gosto de deixar o sal no corpo algumas horas, dum dia para o outro, o tempo que é preciso para corroer as impurezas enfiadas nos poros.
(...)
....Se quiserem conquistar a rapariga dos vossos sonhos, não lhe ofereçam flores nem lhe mandem cartas - convidem-na para um jantar em vossa casa. Algumas boas receitas que servem apenas de aperitivo. A sedução infalível virá depois, quando ela poisar os lábios na vossa pele. Tenham é o cuidado de convidá-la num dia em que forem ao mar. E façam como eu: não tomem banho depois do surf.

Gonçalo Cadilhe
No Princípio Estava o Mar

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