16/12/2009

"o Velho que lia romances de amor"

(...)

- "Olha, com toda esta confusão já quase me esquecia. Trouxe-t dois livros.
Os olhos do Velho iluminaram-se.
- De amor?
O dentista assentiu.
António José Bolívar Proaño lia romances de amor, e em cada uma das suas viagens o dentista abastecia-o de leitura.
- São tristes? - perguntava o Velho.
- De chorar rios de lágrimas - garantiu o dentista.
- Com pessoas que se amam mesmo?
- Como ninguém nunca amou.
- Sofrem muito?
- Eu quase não consegui suportar - respondia o dentista. Mas o doutos Rubicundo Loachamín não lia romances.
Quando o Velho lhe pediu o favor de lhe trazer leitura, indicando muito claramente as suas preferências - sofrimentos, amores infelizes e desfechos felizes -, o dentista sentiu que estava perante um encargo difícil de cumprir.
O Velho recebeu os livros, examinou as capas e declarou que gostava.

(...)

António José Bolivar sabia ler, mas não escrever.
Lia lentamente, juntando as sílabas, murmurando-as, a meia voz como se as saboreasse, e, quando tinha uma palavra inteira dominada, repetia-a de uma só vez. Depois fazia o mesmo com a frase completa, e dessa maneira se apropriava dos sentimentos e ideias plasmados nas páginas.
Quando havia uma passagem que lhe agradava especialmente, repetia-a muitas vezes, todas as que achasse necessárias para descobrir como a linguagem humana também podia ser bela."


Luís Sepúlveda - o Velho que lia romances de amor

03/12/2009

"Por muitos anos e bons..."

A minha vontade de chegar era sempre extasiante. Sentia-me tão ansioso que, de 30 em 30 minutos, perguntava aos meus Pais e ao meu Irmão: "ainda falta muito? quanto tempo mais?". Chegar às minhas raízes, e à de meus Pais, significava o começo de mais um Verão, de mais umas 'Férias Grandes' como todos lhes chamávamos. O reencontro com os primos, tios, avós e amigos de sempre, eram por mim esperados ao longo de todo um ano lectivo.
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Quando chegávamos, o calor baforento que se fazia sentir mal saía do carro, significava que finalmente estava 'em casa'. Nada tinha mudado: depois da habitual visita a cada um dos lares de familiares, podia começar as minhas voltinhas à procura dos 'meus amigos'. Se não estavam em casa, estavam na piscina da aldeia ou no rio. E lá ia eu, primeiro à piscina, depois ao rio, até o sol desaparecer por trás dos enormes salgueiros que nos ofereciam a sua sombra nas horas mais quentes.
A noite era de festa. Como qualquer aldeia beirã que se preze, não podiam faltar as sempre inesquecíveis festas em homenagem ao santo padroeiro da mesma: São Sebastião e Nossa Senhora da Saúde. Entre as febras e o frango assado, as correrias e as brincadeiras, e a música tradicional portuguesa, aconteciam os primeiros namoricos e piscares de olhos às meninas.
O dia seguinte nunca era muito diferente. Ao acordar podia contar com o canto madrugador das galinhas, um copo de leite bem gelado, uma torrada, e um mimo dos meus avós. De seguida, saía a correr para mais um dia para o qual iria necessitar de todas as minhas forças para brincar mais do que ninguem.
Certo era que à hora de jantar todos estariamos juntos de novo: 'onde jantamos hoje? em casa dos padrinhos ou dos avós?' O sítio não importava, o importante era estarmos todos, e estávamos!
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Ao certo não sei a primeira recordação que tenho de Ti. Não faço ideia de quando Te vi pela primeira vez, mas daria muitas outras boas recordações que tenho em troca por essa. Ainda assim, tenho ideia que foi nestes momentos mais familiares que Te comecei a olhar de forma diferente que a todos os outros que não via ao longo de quase um ano. Talvez pela ternura que demonstravas quando olhavas para mim, pelo teu sorriso doce e carinhoso, ou simplesmente pela forma como chegavas perto e Te pegavas comigo. Como Te digo, não sei... mas também não é o mais importante.
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E o que é o importante? O importante seria Tu saberes tudo isto um dia em que não To possa dizer, e que mesmo que um dia que não To possa dizer, tentarei demonstrá-lo de uma outra forma. Agora sou eu que olho para Ti com a ternura, com o carinho, com a delicadeza e com o amor que me olhavas em pequeno e em que eu Te respondia com a desconfiança própria de quem não percebia o que me eras. O importante é que, ainda que não Te lembres, eu me recorde de como dizias que estava mais forte e maior a cada ano que passava: "ainda te tombo", dizias Tu enquanto faziamos o 'braço de ferro', e eu ria-me. Dava ainda mais memórias para To ouvir dizer hoje...
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O importante é que, mesmo que passado um minuto o perguntes de novo, Te hei-de repetir por infinitas vezes o meu nome, de onde sou, de onde venho e o que Te sou, as vezes que forem precisas, ao qual vais sempre responder: "que o sejas por muitos anos e bons..." e esquecê-lo de seguida. Mais importante de tudo Avô é que, ainda que a tua memória não Te permita recordar-me, eu continue a ver nos teus olhos o mesmo olhar que sempre vi... e isso é memória que não trocaria por nenhuma outra.