12/05/2009

O copo que queria ser de cristal



Era apenas um copo. Um copo como tantos outros: de vidro, forma cilíndrica, tubular... No entanto, este queria ser mais, sonhava com isso, suspirava e lamentava o fado que a vida lhe oferecera.
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Na prateleira do armário, estremecia e escondia-se quando abriam a porta, tinha medo que o escolhessem, que o tirassem, que o usassem, não por não querer ser usado, mas pelo medo que tinha das alturas. Assim que o armário se fechava e ele não era o escolhido, o seu coração acalmava, tudo voltava ao normal, ao mesmo escuro bréu, e deitava-se, sozinho, a pensar que podia ter sido o que não era.
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Na realidade, este copo, um copo como tantos outros, queria ser de cristal, e amaldiçoava todos os dias o facto de ser igual a todos os que haviam na prateleira. Era criticado por isso, mais, era muitas vezes enchovalhado, amedrontado e ameaçado: "um dia que se esqueçam de fechar o armário, empurramos-te. Pensas que és mais que nós? Não és, e mais tarde ou mais cedo, vais ser usado, vais ter que ser lavado no lava-loiças ou na máquina de lavar. Vais acabar por ficar riscado, velho e... sozinho, substituído por outro".
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O copo ouvia e nada dizia. Tremia so de pensar que tudo aquilo lhe podia acontecer: "Porque nasci eu assim? Porque não sou de cristal? Os copos de cristal não se riscam, não ficam velhos, não são substituidos", pensava. A verdade é que no momento em que nascera fôra posto num caixote e nunca estivera sequer exposto para venda. Foi comprado com mais 19 iguais a ele, todos na mesma caixa, e apenas tinha sentido o toque humano no momento em que passou da embalagem para a prateleira onde agora estava.
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Um dia, um velho copo sentou-se com ele e tentou explicar-lhe o seu papel, ainda que de vidro: "Tu não sabes o que é arrepiarmo-nos com água fria, não fazes ideia do que é sermos "beijados" por quem nos escolhe, sentirmos a mão quente de alguem que precisa de nós. Pensas que não tenho medo de caír? Que não tenho medo de me estilhaçar no chão? É o nosso pior pesadelo, mas é algo com que temos que viver, e isso... é viver, mais do que sonhar", disse.
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O copo ficou a pensar no que o velho lhe dissera durante dias... de facto, ele nunca poderia ser outra coisa que não um copo, e mais do que um copo descartável, ele era novo, de vidro e com toda uma vida pela frente. Assim, levantou-se, colocou-se na parte da frente da fila, de tal forma que parecia empurrar a porta do armário. A ânsia que sentia por querer sentir tudo o que não sentira desde que entrou naquele armário guiavam-no, e então, assim que a porta se abriu, o copo, com uma vontade desmedida, foi atrás e numa queda vertiginosa sentiu que nunca iria sentir nada, nem sequer a possibilidade de ser "beijado", ficar velho ou riscado... e partiu-se em mil pedaços...

1 comentário:

  1. Carpe diem!
    Muito boa a narrativa!

    http://www.riskuz.blogspot.com/

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